A reforma trabalhista deixa o trabalhador no Pelourinho

Levantado na praça principal da povoação, o pelourinho, ou picota, representou a autoridade local e a autonomia – símbolo jurídico e administrativo – da municipalidade medieval portuguesa em relação ao poder central. Era o local onde se expunham os criminosos – amarrados e chicoteados – aos quais se infligiam as penas exemplares impostas pelas autoridades locais. Os infratores da lei eram sentenciados e expostos ao escárnio do povo.

Noutro tempo, e sob os augúrios da “modernidade”, o Brasil comemora, em 2018, trinta anos da promulgação de nossa Constituição Cidadã. Dentre suas pretensões, pode-se mencionar a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, ao mesmo tempo em que tenciona abrir as portas do Poder Judiciário a todos aqueles que sofreram, ou estivessem ameaçados de sofrer, lesão em seus direitos.

A perspectiva, portanto, era a de inclusão e de esperança. Os desejos, àquela época, eram ambiciosos. Não se imaginava, contudo, os desafios que estariam por vir.

Passadas décadas de vigência da nova ordem constitucional, contudo, colocamo-nos diante de uma das mais contundentes reformas na legislação social brasileira, sendo um de seus traços mais marcantes a criação de obstáculos para se acessar os meios de solução pacifica de conflitos que ocorrem em sociedade.

Logo nos primeiros meses de vigência da denominada reforma trabalhista, aprovada a pretexto de modernizar as relações de trabalho, noticiam-se decisões isoladas, mas de grande carga simbólica, dando conta de que trabalhadores (desempregados) que se atreveram a buscar socorro na Justiça do Trabalho foram condenados a pagar valores altíssimos, como se isso decorresse da aplicação das leis trabalhistas. Como se pode supor, não é.

De Mato Grosso chega a notícia da condenação de um vendedor que buscava receber diferenças, que entendia devidas, a pagar mais de R$ 700 mil, pelo mero fato de que, no entender do julgador, não avaliou adequadamente os riscos da demanda. Assim, deveria sofrer a reprimenda.

 

Não surpreende, nesse contexto, a desistência de pedidos a fim de evitar futuras condenações em custas judiciais – sem se considerar que, quando referidos pedidos foram feitos, essas regras sequer existiam.

 

Causa perplexidade que a decisão referida provenha da mesma Justiça que, por vezes, mostra-se refratária em punir transgressores da legislação que protege direitos básicos dos trabalhadores. Em 2010 o Tribunal Superior do Trabalho, numa robusta ação em que se discutia a contaminação – e a morte – de dezenas de seres humanos por produtos tóxicos, depois da análise do Juiz e do Tribunal Regional do Trabalho, adotou uma tese criativa para livrar duas das maiores multinacionais do setor químico de pagar R$ 22 milhões a título de custas judiciais. Uma das empresas, com faturamento na ordem das centenas de bilhões de dólares, teve sucesso no argumento de que o valor arbitrado teria natureza de confisco, representando óbice ao seu direito de recorrer.

O compromisso firmado, em 1988, de construirmos uma sociedade justa, livre e solidária, pode estar se perdendo num emaranhado de novas regras que, como os exemplos acima parecem demonstrar, inviabilizam os instrumentos de realização de direitos fundamentais.

A perplexidade inicial com sintomática queda no número de reclamatórias trabalhistas, ocorrida nos mais diversos Tribunais Regionais do Trabalho; a criação de novas formas de quitação do contrato de trabalho sem qualquer amparo legal – buscando-se, assim, meios ainda mais alternativos às possibilidades já criadas pela reforma trabalhista; a tarifação da dor, com a fixação de valores independentemente da extensão do dano causado, dentre diversas outras criações que, para muito além de buscar construir uma relação laboral mais justa, apenas estão a causar maior insegurança, desconfiança e o acirramento das relações.

Vemo-nos, então, em um momento em que nosso sistema de justiça social, incluídos o Poder Judiciário, o Ministério Público, os sindicatos, os trabalhadores e os empregadores, é chamado a responder ao desafio posto, com responsabilidade, buscando, no texto constitucional, solução à crise instalada.

No século XXI, quando se comemoram os 30 anos de uma Constituição que prometeu edificar a ordem social a partir do primado do trabalho, tendo como objetivos o bem-estar e a justiça social, soa estranho que ao buscar socorro na Justiça do Trabalho o trabalhador encontre o seu pelourinho.

Leomar Daroncho e Daniel Gemignani são Procuradores do Trabalho.

Fonte: Carta Capital

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